A partir do recente leilão que concedeu a uma única empresa, a Aegea Saneamento, a responsabilidade de gerir o saneamento básico em 224 municípios piauienses, o estado do Piauí começa uma jornada complexa e ambiciosa. O objetivo é transformar profundamente a infraestrutura de água e esgoto, elevando o acesso e a qualidade dos serviços para a população.
Com uma cobertura atual de apenas 68% para água e míseros 10% para esgoto, a situação do saneamento no Piauí reflete tanto as deficiências históricas do setor quanto a urgência de avanços significativos para atingir as metas de universalização estabelecidas pela Lei Federal 14.026/2020.
Esse modelo de concessão plena do saneamento básico no Piauí, que transferiu a gestão completa dos serviços de saneamento para a Aegea pelo período de 35 anos, veio com um conjunto de metas ambiciosas e necessidades financeiras expressivas. A Aegea, que venceu o leilão realizado na B3 no final de outubro de 2024, comprometeu-se com investimentos mínimos de R$ 8,6 bilhões até 2058. Esse montante, embora expressivo, ficou aquém dos R$ 10 bilhões estimados anteriormente pelo governo estadual, além de incluir um valor de outorga de R$ 1 bilhão, dividido entre o estado e os municípios. O que está em jogo, no entanto, é muito mais do que números: é a saúde, a dignidade e o desenvolvimento de milhões de piauienses.
O quadro atual e os desafios estruturais
A microrregião do Piauí, com uma população de aproximadamente 2,4 milhões, enfrenta uma infraestrutura de saneamento historicamente deficiente. Dos 224 municípios, apenas 68% das residências têm acesso à água tratada, e a cobertura de esgoto atende a ínfimos 10% das habitações. Em termos de volume, o estado produz cerca de 135 milhões de metros cúbicos de água tratada anualmente, enquanto o esgoto tratado mal chega a 7 milhões de metros cúbicos, e apenas em áreas rurais.
Para a população, o cenário representa não apenas uma precariedade no acesso aos serviços, mas também um peso financeiro e sanitário. O déficit de infraestrutura acarreta gastos elevados com saúde pública, já que a falta de saneamento básico é uma das principais causas de doenças infecciosas e parasitárias.
A Aegea, ao assumir o controle desse sistema, herda uma infraestrutura desgastada e enfrenta um quadro de ineficiência operacional. O sistema atualmente gerido pela Agespisa, empresa estadual, é marcado por altas taxas de perda na distribuição, necessitando de investimentos significativos para a modernização e ampliação. Comparativamente, o estado do Piauí está bem abaixo da média nacional em termos de cobertura e eficiência nos serviços de saneamento, o que torna a tarefa da nova concessionária ainda mais desafiadora.
O compromisso com a universalização agora é da Aegea Saneamento
O projeto, conforme definido pelo leilão de concessão, traz metas robustas e de longo prazo. Até 2033, a Aegea precisa assegurar que 99% da população tenha acesso à água tratada, e até 2040, 90% dos habitantes deverão estar cobertos por redes de esgoto. Para um estado onde apenas 18% da população atual possui acesso a tratamento de esgoto, isso significa um salto de proporções históricas. A maior parte dos investimentos de R$ 8,6 bilhões será alocada nos primeiros 10 a 15 anos, visando uma expansão acelerada da infraestrutura e atendendo às exigências de universalização.
Essa concessão representa também o primeiro projeto de saneamento básico no Brasil a incluir áreas rurais na meta de universalização. Em um estado com uma extensa área territorial e uma população amplamente dispersa, a inclusão das zonas rurais coloca um peso extra sobre a concessionária. O Piauí é o segundo estado mais rural do Brasil, com 37% de sua população vivendo em áreas rurais. Isso significa que a Aegea precisará construir uma rede robusta de distribuição de água e coleta de esgoto que atenda tanto a áreas urbanas quanto rurais, o que exige um esforço logístico e financeiro elevado.
O valor da outorga ficou abaixo do esperado pelo governo
O leilão, que tinha uma expectativa inicial de arrecadação de R$ 3 bilhões, surpreendeu ao finalizar com a concessão para a Aegea pelo valor mínimo de R$ 1 bilhão, valor significativamente abaixo do previsto pelo governo estadual. Esse desfecho sem concorrência levanta uma questão sobre o real valor de mercado da concessão e sobre o potencial de atração de investimentos para projetos de saneamento em estados menos favorecidos economicamente. No entanto, o governo considera que, mesmo com o valor de outorga reduzido, a garantia de investimentos em um modelo de concessão plena é um passo positivo para o desenvolvimento do estado.
A outorga para uma única empresa, contudo, também apresenta seus pontos de atenção. Ao concentrar toda a operação de água e esgoto em uma única entidade, o Piauí corre o risco de enfrentar problemas de monopólio, onde a falta de competição pode levar a menores incentivos para inovações e melhorias. Embora a concessão inclua cláusulas de regulação e fiscalização rigorosas, há um risco inerente ao controle total de um setor essencial por uma única empresa privada. A contrapartida está na expectativa de que a Aegea, com expertise no setor, consiga superar as limitações históricas que o estado vem enfrentando e promova um avanço significativo em termos de qualidade e cobertura dos serviços.
Infraestrutura e investimentos necessários para o cumprimento das metas
O compromisso firmado no leilão estabelece um investimento mínimo de R$ 8,6 bilhões, com foco nas primeiras duas décadas de concessão. No entanto, esses recursos, apesar de expressivos, estão abaixo do valor estimado pelo governo para alcançar a universalização, que seria de cerca de R$ 10 bilhões. A diferença de R$ 1,4 bilhão acende um alerta sobre a capacidade de execução plena das metas. Para suprir as deficiências atuais e expandir o sistema, a Aegea terá de construir aproximadamente 5.253 quilômetros de rede de água e 601 quilômetros de rede de esgoto.
A captação desses recursos no mercado financeiro será determinante para a viabilidade do projeto. Especialistas apontam que, em projetos de concessão dessa magnitude, o acesso ao capital de longo prazo e a capacidade de manter uma operação eficiente e sustentável são cruciais. Com as demandas de cobertura rural e a dispersão populacional do estado, a Aegea enfrenta uma tarefa titânica para cumprir as obrigações e alcançar as metas de universalização estabelecidas.
Pontos positivos e os riscos da concessão para o estado
Entre os benefícios esperados, a concessão plena para a Aegea deve contribuir significativamente para a melhoria da qualidade de vida dos piauienses. Estudos indicam que o acesso ao saneamento pode reduzir consideravelmente os custos com saúde, prevenindo doenças infecciosas que se propagam pela falta de infraestrutura sanitária. Com uma estimativa de geração de cerca de mil empregos diretos e indiretos, o projeto também promete impulsionar o desenvolvimento econômico local.
A valorização imobiliária é outro ponto positivo. Imóveis em áreas atendidas por redes de água e esgoto valorizam-se em até 15% mais, o que representa um impacto econômico positivo para a população e para o próprio governo, que pode ver um aumento nas receitas advindas de impostos sobre a propriedade. Além disso, a criação de uma rede de saneamento eficiente favorece o ambiente, reduzindo a contaminação dos recursos hídricos e promovendo um desenvolvimento sustentável.
Por outro lado, a outorga para uma única empresa traz riscos. A falta de concorrência pode gerar uma concentração excessiva de poder e reduzir o incentivo para melhorias e inovações constantes. Embora o contrato inclua medidas de fiscalização e metas rigorosas, a monopolização do saneamento básico nas mãos de uma única empresa torna o estado e sua população dependentes da eficiência e comprometimento dessa concessionária. Em caso de problemas na execução, as alternativas do governo se tornam limitadas, e o processo para reverter uma concessão dessa magnitude é complexo e de longa duração.
O futuro do saneamento no Piauí
As expectativas em torno desse projeto são altas. O governador do Piauí, Rafael Fonteles, declarou confiança na capacidade da Aegea em cumprir as metas, mas reconheceu que a densidade populacional e a dispersão dos habitantes representam desafios únicos. Para a população, acostumada a serviços deficientes, o compromisso da Aegea surge como uma promessa de melhoria na qualidade de vida. No entanto, a confiança e aceitação da empresa pela população dependerão de sua capacidade de efetivar mudanças concretas e visíveis nos próximos anos.
Além das exigências do contrato, a Aegea enfrentará um desafio extra na construção de uma relação de confiança com os piauienses, que historicamente veem o saneamento como um problema crônico. Em muitos municípios, a infraestrutura de água e esgoto é quase inexistente, e as expectativas de melhoria podem ser altas, mas acompanhadas por um ceticismo persistente. O sucesso ou o fracasso dessa concessão servirá como um exemplo para outros estados com situações semelhantes e ajudará a moldar o futuro do modelo de concessão plena no Brasil.
O futuro do projeto dependerá da capacidade da Aegea em atender a essas exigências, superar os obstáculos regionais e transformar a infraestrutura de saneamento de maneira eficiente e sustentável.