A Polícia Federal (PF) concluiu que as 60.734 consultas realizadas com o sistema de monitoramento First Mile pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin), entre 2018 e 2021, foram ilegais. Essa constatação está detalhada em um relatório sigiloso da corporação, que teve o sigilo suspenso nesta terça-feira (18/6) pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Uso ilegal da tecnologia de monitoramento
O documento destaca que as consultas foram realizadas sem qualquer respaldo judicial, apontando “vício identificado na origem”, uma vez que a contratação da tecnologia ocultava sua real natureza intrusiva. O sistema First Mile, adquirido por R$ 5,7 milhões pela Abin com o objetivo oficial de apoiar a intervenção federal no Rio de Janeiro, foi amplamente utilizado para interesses pessoais e políticos.
O relatório da PF revela que o software tinha a capacidade de rastrear a localização de dispositivos móveis sem a devida ordem judicial, o que representa uma clara violação dos direitos fundamentais dos cidadãos. Esse uso indiscriminado da tecnologia gerou preocupações acerca da privacidade e da segurança das informações pessoais de milhares de brasileiros.
Estrutura paralela de inteligência sob Ramagem
A PF também detalhou a existência de uma “estrutura paralela de inteligência”, que estava sob a chefia do então diretor-geral da Abin, Alexandre Ramagem. Essa estrutura teria desviado recursos humanos, financeiros e tecnológicos da Abin para fins de proteção política e monitoramento de opositores, jornalistas, advogados e servidores públicos.
O relatório afirma que o núcleo político instalado na Abin fazia uso da ferramenta para realizar ações clandestinas e coletar dados sensíveis sem a necessária supervisão institucional, burlando a exigência de autorização judicial prevista na Constituição Federal. Isso levanta questões sérias sobre a integridade do serviço de inteligência do país e sua utilização para fins não apenas ilícitos, mas também antiéticos.
Contratação com finalidades ocultas
A investigação levanta ainda a suspeita de que a aquisição do sistema de monitoramento foi realizada com plena consciência de seu caráter invasivo. Técnicos e gestores da Abin teriam ocultado, de maneira deliberada, o potencial violador da privacidade da tecnologia nos documentos formados durante o processo licitatório, como estudo técnico preliminar e termo de referência.
Perícias da PF, incluindo processos de engenharia reversa, confirmaram que a interface do First Mile tinha capacidade de localização em tempo real e coleta de dados sensíveis. A omissão dessas características no processo de licitação foi considerada estratégica para possibilitar o uso do sistema sem controle judicial.
Consequências e repercussões
A ilegalidade das consultas e a ausência de motivos formais que respaldassem os monitoramentos realizados foram destacadas no relatório. Isso impossibilita a compreensão do contexto que motivou a grande parte das ações, evidenciando a falta de supervisão e controle necessários na utilização de ferramentas tão poderosas.
As repercussões do relatório da PF podem ser significativas, não apenas para os envolvidos na condução da Abin durante o período em questão, mas também para toda a estrutura de inteligência do Brasil. Investigações adicionais podem ser desencadeadas, e consequências legais poderão ser impostas aos responsáveis pelo uso indevido da tecnologia.
O caso reflete um momento crítico na política brasileira, especialmente considerando o envolvimento de figuras proeminentes e a utilização da máquina pública para fins particulares. O monitoramento sem autorização judicial levanta preocupações sobre a privacidade e os direitos dos cidadãos, além de questionar a ética no uso de recursos públicos.
À medida que a investigação avança, a sociedade civil, órgãos de defesa dos direitos humanos e entidades jurídicas observarão atentamente as ações do STF e da PF, na expectativa de que a prestação de contas seja feita e que medidas sejam tomadas para evitar abusos de poder no futuro.