Em 2024, o Brasil registrou, em média, um caso de tráfico de pessoas por dia, segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. A prática criminosa, que envolve o recrutamento e transporte de vítimas por meio de coação e exploração, atinge principalmente grupos vulneráveis, muitos dos quais acabam submetidos a condições análogas à escravidão. O setor da moda é um dos mais afetados por essa realidade, com confecções frequentemente flagradas em situações de trabalho degradante, expondo o lado obscuro da indústria têxtil no país.
Promessas de uma vida melhor
Valdecir Babinski, mestre em Design de Vestuário e Moda pela Universidade do Estado de Santa Catarina, nos alerta sobre os mecanismos que atraem essas pessoas ao Brasil. “São indivíduos que, em situações financeiras delicadas, são seduzidos por promessas de uma vida melhor, buscando emprego e qualidade de vida”, explica. Entretanto, ao chegarem ao país, a realidade é cruel e distante das expectativas: passaportes são retidos, e as vítimas são mantidas em alojamentos precários nas próprias fábricas. Este ciclo de exploração se perpetua através do endividamento, impedindo qualquer possibilidade de fuga.
Dados alarmantes sobre trabalho escravo
Segundo o Dossiê Trabalho Escravo e Migração Internacional, entre 2010 e 2023, 677 pessoas foram resgatas do trabalho análogo à escravidão na indústria têxtil brasileira, sendo a maioria trabalhadores estrangeiros. Destes, 43% eram bolivianos, seguidos por paraguaios, haitianos e venezuelanos. As áreas urbanas, em especial a cidade de São Paulo, se tornaram epicentros desse fenômeno lamentável. Babinski enfatiza que “o fast fashion explora a miséria humana”, fornecendo aos trabalhadores apenas o suficiente para sair da extrema pobreza, mas nunca para ascender a uma condição digna e sustentável.

Condições de trabalho desumanas
Os relatos de ex-trabalhadores são perturbadores. Muitos chegam a relatar que desejam deixar essas condições, mas são impedidos. “É como se estivessem acorrentados à máquina de costura”, afirma Babinski. Os cenários de exploração são comuns em centros comerciais como o Brás e o Bom Retiro, onde flagrantes de trabalho análogo à escravidão ainda são frequentes. Em 2019, um acordo entre empresas de moda e o Ministério Público do Trabalho resultou na indenização de R$ 324 mil às vítimas do trabalho forçado.
A situação no cenário global
Infelizmente, a exploração da mão de obra e tráfico de pessoas na moda não é uma questão restrita ao Brasil. Países do Leste Asiático, como China, Bangladesh e Camboja, também enfrentam sérios problemas relacionados ao trabalho análogo à escravidão. Marcas conhecidas globalmente, como Nike, Shein e Zara, foram acusadas de exploração em sua cadeia produtiva, com denúncias que incluem trabalho infantil em condições hostis. Esses problemas surgem em um contexto empresarial que, ao buscar maximizar os lucros a todo custo, ignora as condições de vida dos trabalhadores.
Desafios e paradoxos na indústria da moda
A questão do controle na cadeia produtiva é frequentemente levantada por grandes empresas. Babinski explica que a constante terceirização das confecções dificulta a supervisão das condições de trabalho. Tais práticas frequentemente resultam na informalidade das facções de costura, que operam em espaços precários, como garagens ou os fundos de casas, e que muitas vezes empregam mulheres em situações vulneráveis. O documentário “Estou me guardando para quando o carnaval chegar”, de Marcelo Gomes, aborda essas questões ao retratar a realidade de trabalhadores em locais como Toritama, Pernambuco, conhecida pela produção de jeans.
O que pode ser feito?
O especialista destaca que, apesar das leis trabalhistas existentes que deveriam proteger os trabalhadores da indústria têxtil, a falha na fiscalização permite a continuidade da exploração. “Faltam suporte e proteção às vítimas que conseguem escapar dessas condições”, aponta Babinski. Para mudar essa realidade, há a necessidade de leis mais rígidas, uma fiscalização ativa e, principalmente, um compromisso da sociedade em reconhecer e agir contra essa modalidade de exploração. Afinal, a moda não pode ser feita à custa de vidas humanas e dignidade,” conclui ele.
Ainda que a consciência sobre essas questões esteja crescendo, é imprescindível que consumidores se tornem mais críticos e exigentes sobre as práticas das marcas que escolhem apoiar. O futuro da moda deve ser construído com ética e responsabilidade, garantindo dignidade para todos os envolvidos na produção.