O Mito da Caverna, de autoria de Platão, é uma metáfora que nos convida a refletir sobre a ignorância da humanidade. Segundo a alegoria, pessoas estão aprisionadas em uma caverna escura e olham projeções de sombras criadas a partir de uma fogueira, tomando tais imagens como única verdade.
Platão não buscava a essência no simples (phýsis), como faziam Demócrito e seus seguidores. Sob a influência de Sócrates, ele perseguia a essência das coisas para além do óbvio, para além do que se vê. Partindo desse pressuposto, um dos prisioneiros consegue se libertar e enxergar a fogueira, as sombras e o mundo fora da caverna. Ao retornar e contar sua descoberta aos demais, no entanto, é ignorado.
Transpondo para a realidade atual, é como se você acreditasse que o mundo é, desde sempre, de determinado modo e, então, vem alguém e afirma que quase tudo aquilo é falso, parcial, apresentando novos conceitos totalmente diferentes.
Foi justamente por razões como essa que Sócrates foi morto pelos cidadãos de Atenas, o que moveu Platão a escrever o Mito da Caverna, por meio do qual nos convida a imaginar que as coisas se passam, na existência humana, à semelhança do que ocorre no interior daquele ambiente: homens acorrentados, ilusoriamente, a falsas crenças, preconceitos, ideias enganosas e, por isso tudo, inertes em suas poucas possibilidades.
Quando o assunto é tecnologia e inovação, deparamo-nos inevitavelmente com algo que desafia a mente humana, seus comportamentos individuais e coletivos, bem como sua capacidade de enxergar e materializar o invisível, o inimaginável, em produtos, sistemas, agentes, dados. Apesar de existir desde 1943, quando Warren McCulloch e Walter Pitts apresentaram seu modelo de neurônios artificiais, a inteligência artificial (IA) popularizou-se globalmente somente em 2022 com o lançamento do ChatGPT, cujo uso foi rapidamente incorporado nos processos de empresas e da academia, no cotidiano e, inclusive, vindo a mudar o rumo das relações afetivas.
A análise, o conhecimento e o profundo estudo da filosofia, das ciências humanas, das ciências exatas, assim como da arte e da literatura, foram substituídos por prompts e por agentes que fazem esse trabalho, colocando para hibernar o cérebro humano, o senso crítico, o discernimento e o poder de construção de um raciocínio lógico, alicerces da humanidade.
As empresas na era da IA, por exemplo, ganharam velocidade e agilidade nas contratações devido ao uso de softwares que, fácil e rapidamente, encontram candidatos ideais para os postos de trabalho, analisando aptidões técnicas e experiências diversas exigidas em cada vaga. As fragilidades deste modelo de contratação, porém, logo apareceram. Onde foi parar a análise completa dos candidatos por parte dos recrutadores que têm por maior habilidade conhecer e gerir pessoas? Onde foi parar a capacidade típica de um processo seletivo pautado na análise de detalhes visando a construção de uma percepção alicerçada no encaixe perfeito entre candidato e vaga? Onde foi parar a gestão de um departamento que lida com o bem mais precioso de qualquer corporação: as pessoas?
As mudanças são tão rápidas e as necessidades do mercado são tão gigantes que só quem enxerga “além do horizonte” se destaca e fura a bolha do lugar comum. Criadores de soluções inovadoras estão atrás de pessoas capazes de dominar a tecnologia, ensinando e modelando os aplicativos de IA generativos que usam linguagem natural e que alimentam LLMs (grandes modelos de linguagem), para executar o NLP (processamento de linguagem natural). Onde estão esses profissionais, o que fazem e como vivem?
Brendan Foody, CEO da Mercor, enxergou um gap nesse mercado de gestão de pessoas, mudando o foco da sua empresa. Inicialmente oferecendo ao mercado soluções de match entre candidato e vaga, agora o foco recai no recrutamento de PhDs para treinar máquina. O negócio principal da Mercor mudou. A empresa não nasceu focada em rotulagem de dados, e esse também não é o objetivo de longo prazo. A ideia original foi modernizar o recrutamento com IA. Seus fundadores construíram uma plataforma em que candidatos eram entrevistados por um avatar de IA e depois conectados a empresas em busca de talentos, como uma espécie de Deloitte ou Accenture de nova geração.
O lançamento do ChatGPT, contudo, poucas semanas antes da fundação da empresa, desencadeou uma corrida entre as big techs para treinar os modelos de IA mais avançados. Foi aí que a Mercor – cujo nome vem de mercado, em latim – encontrou seu espaço, escalando pessoas para treinar modelos de IA e reposicionando, por conseguinte, toda a empresa nessa direção. Dentre as big techs atendidas pela Mercor, está a própria Open IA, que busca talentos com valor agregado. E quais seriam tais valores? Em resumo, poder e análise, repertório, experiência, alto nível de conhecimento e capacidades que, pouco a pouco, foram sendo esquecidas na humanidade pela falta de hábitos vitais para a inteligência humana: leitura, estudos, domínio de referências capazes de explicar mundos e conectar fatos, fluência em ciências diversas e habilidade para descobertas inovadoras que atendam, principalmente, pessoas e comunidades, salvando-as das cavernas e lhes mostrando o mundo sensível, o mundo das verdadeiras transformações.
*Raquel Uchôa Moreira atua com tecnologia e inovação, ux e ui desde 2001, quando fundou a empresa paranaense Ox Digit. Foi docente na UniOpet Curitiba, Unopar Londrina, founder de startups e é palestrante. Atualmente ocupa a diretoria da pasta Mulheres na TI da Associação das Empresas de Tecnologia (Assespro-PR), bem como a diretoria na pasta Inovação, Tecnologia e Pesquisa da Associação Paulista de Gestores de RH (AAPSA) da Regional Paraná. Apaixonada por arte, literatura e antiguidade, atua desde 2015 com projetos voltados à preservação do Patrimônio Histórico, implementação de Áreas de Revitalização Compartilhada (ARCs), cafeteria e gastronomia.




