A recente demissão do padre Michael Hickey, após longos anos de serviço, simboliza uma crise muito maior que atinge a Igreja Católica na Irlanda. Ele, que foi missionário na Serra Leoa durante os horrores da guerra civil na década de 1990, passou seus últimos anos como pároco em Drum, Co Roscommon, onde conquistou a afeição de seus paroquianos. Contudo, sua aposentadoria forçada aos 82 anos motivou uma mobilização inesperada, gerando protestos e angústia entre os fiéis. O que esta situação nos diz sobre o estado atual da Igreja na Irlanda?
A despedida que não deveria acontecer
No centro de Athlone, em um hotel, amigos e admiradores de Hickey organizaram uma celebração emocionante, mas também marcada pela indignação. Faltando um ano para sua aposentadoria oficial, os paroquianos recolheram 2.300 assinaturas exigindo que ele ficasse. A resistência deles ficou evidente no descontentamento diante da decisão do bispo Kevin Doran, que se manteve firme, ignorando a pressão.
O clima era significativo; em um país onde a autoridade da Igreja vara deturpada por escândalos de abuso nas últimas décadas, a reação dos fiéis representa um desejo por mudança. “A Igreja é o povo”, disse uma mulher durante a celebração, enfatizando um chamado a uma maior representatividade.
Uma Igreja em declínio
Os números são alarmantes. Um censo realizado em 2022 revelou que apenas 69% da população irlandesa se identificava como católica, uma queda acentuada em relação a 79% em 2016. A realidade da imigração de padres de outras partes do mundo, como a África e a Ásia, reflete a escassez de clérigos locais e a transformação do cenário religioso.
Não é apenas a Irlanda que passa por um declínio, países como o Reino Unido também reportam uma diminuição significativa no número de cristãos. Porém, para a Irlanda, a queda é ainda mais acentuada, visto que a Igreja Católica sempre teve um papel central na identidade nacional. Os templos estão esvaziando, e muitos padres têm evitado usar seus trajes religiosos fora da Igreja, temendo represálias.
As raízes da crise
A crise atual está diretamente ligada a décadas de escândalos que abalaram a confiança da população. Em 1990, um dos bispos mais famosos, Eamonn Casey, foi desmascarado por ter uma filha. Em anos subsequentes, casos sistemáticos de abuso por clérigos vieram à tona, rompendo a credibilidade da instituição. Votaram-se plebiscitos legais sobre divórcio, casamento entre pessoas do mesmo sexo e aborto, que sinalizavam uma mudança drástica nos valores culturais irlandeses.
O pano de fundo deste declínio se reflete no número cada vez menor de padres. Nos últimos 30 anos, o número de padres ativos caiu pela metade, e o recrutamento de novas vocações também sofreu um colapso. Hoje, apenas 13 homens iniciaram seus estudos para o sacerdócio, um número alarmante comparado ao que se viu nas décadas anteriores.
A nova geração de padres
O padre Jonas Rebamontan, vindo das Filipinas, reflete essa nova realidade. Ao contrário do seu país de origem, onde os padres são respeitados e considerados figuras centrais, na Irlanda ele rapidamente percebeu a desconfiança que a população nutre em relação ao clero. Enquanto em seu país o peso da palavra de um padre é grande, na Irlanda, muitos se sentem à margem.
Com essa nova dinâmica, alguns padres estão perdendo a esperança de revitalizar a fé dentro da Igreja. Para alguns, o futuro parece sombrio. O bispo Alphonsus Cullinan, por exemplo, discute a necessidade urgente de rever o modelo do clero. A relação do clero com os leigos está mudando; e uma solução pode estar na aceitação de reformas mais progressistas, como a ordenação de mulheres e a flexibilização do celibato.
Desafios financeiros e identidade local
A quantidade de paróquias em dificuldade financeira é alarmante. Com a diminuição do número de fiéis, a arrecadação de donativos mantidos pela tradicional coleta nas missas ficou comprometida. O padre Tim Hazelwood, em Co Cork, relata que as finanças da paróquia caíram 15% nos últimos dez anos. Igrejas que uma vez floresceram agora tentam resistir a um desmoronamento financeiro.
Os desafios não são apenas financeiros, a identidade da paróquia está mudando. O GAA (Gaelic Athletic Association) agora atrai a comunidade local mais do que a própria Igreja. A música popular e o esporte tomam o lugar da espiritualidade, fazendo os padres refletirem sobre o que realmente significa ser um líder espiritual em um contexto onde as tradições estão se dissolvendo.
À medida que a Igreja Católica na Irlanda continua a afrontar as mudanças, a luta para se reinventar nos tempos modernos será crucial. A adaptação a um novo paradigma pode determinar se a Igreja perdurará ou se se tornará uma memória distante em um país que mudou radicalmente seu relacionamento com a fé.