No suplemento mensal de julho do jornal vaticano “L’Osservatore Romano”, intitulado “Donne Chiesa Mondo”, são exploradas histórias de mulheres que transitam entre o cinema, a fé e a busca por um renascimento espiritual. O destaque é dado à riqueza das narrativas cinematográficas que abordam a crise existencial, entrelaçando questões de fé e autoafirmação com as vidas de personagens icônicas como Ingrid Bergman e Meryl Streep.
O cinema como artífice de reflexão
O cinema é uma arte que, por natureza, explora a visão e a linguagem não verbal, apresentando temáticas que lidam com a crise. O cinema autoral, em particular, se destaca ao expor poéticas originais que dialogam com a experiência humana. Dessa forma, a crise, que é uma constante no âmbito cinematográfico, é investigada sob várias lentes, desde o drama até a comédia e a fantasia, abordando figuras femininas que se destacam pela profundidade de seus papéis.
A renomada historiadora Tiziana M. Di Blasio, responsável pela análise publicada, observa que a presença e ausência de Deus no cinema são objetos de investigação de teóricos e cineastas. Estes criadores, através de suas obras, abordam temas como a vocação, o desvio e a rebelião, construindo itinerários que questionam a condição humana numa sociedade marcada pelo vazio existencial.
O papel transformador de Irene em “Europa ’51”
Uma das obras analisadas no suplemento é “Europa ’51”, um filme de Roberto Rossellini que se inspira nas reflexões de Simone Weil. Nele, a protagonista Irene, interpretada por Ingrid Bergman, representa uma mulher da alta burguesia que enfrenta uma crise profunda após a morte de seu filho. Essa dor a impulsiona a questionar o sentido de sua vida e a desvincular-se das normas sociais estabelecidas, um ato que a leva a uma jornada de autodescoberta e empatia.
Rossellini, ao abordar a vida de Irene, antecipa temas contemporâneos, como a condição das pessoas à margem da sociedade. Através de um “documentário sobre o rosto”, o diretor narra o caminho existencial de Irene, que ao cuidar de deserdados e operários, revela que cada ato de amor é uma busca pelo divino. Esta mensagem, mesmo anos depois, continua a ressoar com força, trazendo esperança em meio à dor.
A busca espiritual em “Thérèse” e a ausência de sentido em Antonioni
Outro filme significativo é “Thérèse”, de Alain Cavalier, que redimensiona a figura histórica de Santa Teresa do Menino Jesus. A obra propõe uma reflexão sobre a vocação, apresentando a personagem Thérèse como uma adolescente em busca de seu propósito divino. O rosto se torna uma chave hermenêutica para a compreensão da alma e da experiência de vida, chamando atenção para a leveza e a profundidade dessa busca.
Michelangelo Antonioni, embora não costume abordar temas espirituais, também é citado no texto. Seu trabalho reflete a ausência de sentido e o vazio existencial, levando o espectador a confrontar sua própria falta de propósito. A interrogação que surge das experiências de vida das freiras de clausura e a dificuldade de compreendê-las se revela como um convite à reflexão sobre o mistério humano e a experiência do transcendente.
A dualidade entre liberdade e coação em “Sangue do meu sangue”
Marco Bellocchio, em seu filme “Sangue do meu sangue”, aborda a força das monacaciones forçadas, mostrando a história de uma mulher que é levada ao extremo da coação. A obra insere-se em um debate sobre a liberdade individual versus práticas sociais opressoras, levando o espectador a refletir sobre as consequências da falta de escolha — um tema ainda muito relevante nos dias de hoje.
A análise de Di Blasio evidencia a diversidade de vozes femininas que permeiam a indústria do cinema. As narrativas exploradas no suplemento “Donne Chiesa Mondo” fornecem lentes únicas pelas quais se pode entender a complexidade da experiência feminina em um mundo que muitas vezes parece incapaz de proporcionar respostas satisfatórias às questões existenciais.
Essas histórias reveladoras não apenas retraçam a jornada de mulheres em busca de propósito, mas também oferecem ao público uma oportunidade de reflexão sobre suas próprias vidas e escolhas. Utilizando o cinema como ferramenta, Di Blasio convida todos os espectadores a se perderem junto a essas personagens, a fim de encontrarem suas próprias verdades em meio às incertezas da vida.
*Tiziana M. Di Blasio é historiadora e ex-professora de “Teoria e História do Cinema” da Pontifícia Universidade Gregoriana.