Nos últimos 20 anos, a mídia conservadora rotulou a Al Jazeera como “TV do terror” devido ao financiamento do Catar. A ideia era clara: o dinheiro qatariano em uma rede de jornalismo significava influência e, portanto, perigo. Essa narrativa foi repetida à exaustão em programas como o Fox News e em diversos canais de rádio e blogs da direita. No entanto, a direção mudou drasticamente. Recentemente, o fundo soberano do Catar foi considerado um dos investidores em uma proposta de aquisição que pode incluir a CNN.
Queda da hipocrisia?
Segundo a Reuters, a equipe de David Ellison avaliou financiamento do Catar, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos para compor o capital da oferta da Paramount–Skydance. Embora esses investimentos não estejam confirmados, a disposição em buscar apoio financeiro de um estado estrangeiro em uma redação americana deveria, no mínimo, provocar alarme entre os mesmos conservadores que antes clamavam contra o dinheiro qatariano. Mas, em vez disso, reina o silêncio.
Da crítica ao silêncio
O programa Fox & Friends outrora dedicava segmentos inteiros a alertar sobre a Al Jazeera como uma propaganda do Catar. Em 2013, a colunista conservadora Michelle Malkin a denunciou como um “cavalo de Troia de meio bilhão de dólares”, acusando a rede de “torcer pelo terror” e responsabilizando vidas americanas. Agora, com o Catar potencialmente financiando uma oferta de aquisição da CNN — uma negociação que passa pela família de Donald Trump — esses avisos se dissiparam.
O papel de Trump no financiamento da mídia
A razão para essa mudança é evidente: não é o Catar que se tornou mais confiável, mas sim Donald Trump. O genro de Trump, Jared Kushner, está servindo como intermediário em um acordo que envolve a riqueza soberana do Golfo, um arranjo do qual Trump parece estar em posição de se beneficiar. A mídia conservadora, portanto, está se posicionando para defender esse acordo antes de priorizar a independência da imprensa.
Essa não é uma inconsistência ideológica, mas sim uma hierarquia. A mídia conservadora se mostra mais leal aos interesses de Trump do que aos valores que uma vez defendeu. O silêncio a respeito do dinheiro do Catar indica que o interesse pelo acesso à influência de Trump está acima dos princípios jornalísticos que antes preconizavam.
Um modelo perigoso
O fato de o Catar poder entrar no “sistema sanguíneo” da mídia americana sem resistência, apenas pelo alinhamento do acordo com a família Trump, abre precedentes preocupantes. Outros governos, com recursos ainda maiores e incentivos mais afiados, podem desejar seguir esse modelo. A China, por exemplo, já controla o algoritmo do TikTok, uma das ferramentas de informação mais poderosas dos EUA. Enquanto isso, a Rússia continua a financiar a RT, que mantém sua presença nas audiências americanas.
Se o dinheiro estrangeiro na mídia americana se tornar aceitável apenas porque alinha-se com figuras políticas, isso abre um caminho seguro para um financiamento potencialmente perigoso. Quando um movimento decide que o dinheiro externo é inofensivo se serve aos seus líderes, essa lógica pode se espalhar rapidamente. O problema vai além da política e atinge o âmago do jornalismo americano.
A crise do jornalismo americano
A transição das organizações de notícias de instituições públicas para ativos corporativos fez com que se tornassem commodities geopolíticas. Quando o financiamento de uma redação é um mosaico de capital privado, famílias políticas e riqueza soberana estrangeira, a dúvida de para quem a informação é produzida aumenta. Cada vez mais, parece ser para quem constrói o capital.
O silêncio conservador é, portanto, alarmante. Não se trata apenas de hipocrisia, mas de um sinal de que o sistema de informação americano está aberto para investimento estrangeiro, contanto que os alinhamentos políticos estejam em ordem. Esse é um precedente perigoso para uma democracia sem uma supervisão consistente sobre os investimentos estrangeiros na notícias e sem um entendimento compartilhado do que deve ser inaceitável.
O Catar pode ser apenas o primeiro a testar essa vulnerabilidade, e não será o último. Quando o próximo governo se aproximar, a classe política americana pode perceber, tarde demais, que o “permissão” já foi assinada.
Este é um artigo de opinião. As opiniões expressas neste texto são do autor.



