As paredes de uma cidade não apenas delimitam espaços físicos, mas também carregam histórias, memórias e conflitos históricos que moldam a narrativa coletiva. Desde tempos antigos, a arquitetura tem sido uma forma de registrar e preservar a identidade de sociedades, muitas vezes se tornando símbolo de resistência ou dominação. Segundo o autor palestino Atef Abu Saif, cada prédio é uma memória viva, uma cápsula de histórias que, ao serem destruídas, apagam partes importantes do nosso passado.
Construções como testemunhas da história e da memória coletiva
Ao pensar na casa onde passamos nossa infância, recordamos detalhes que vão além da estrutura: cores, aromas, sensações. Essa relação emocional reforça a ideia de que a arquitetura é uma extensão da memória individual. Em contrapartida, a memória coletiva é construída por disputas e interesses políticos, muitas vezes moldada por escolhas que reforçam narrativas específicas. Essas disputas contribuem para o que o jornalista uruguaio Eduardo Galeano descreve como uma tentativa de impor um projeto hegemônico de memória.
Arquitetura e políticas de resgate ou revanchismo
Ao longo da história, regimes autoritários e políticos de extrema direita utilizaram a arquitetura como ferramenta de projeção de poder e ideologia. Nos Estados Unidos, Donald Trump defendeu a retomada do estilo clássico greco-romano para edifícios públicos federais, alegando representar o “patrimônio arquitetônico tradicional e clássico”. De forma semelhante, na Europa, iniciativas conservadoras procuram revalorizar formas tradicionais, rejeitando modernidades que representam mudanças sociais e culturais.
Exemplos históricos e ideológicos de resgate arquitetônico
Durante o regime nazista, Adolf Hitler e Albert Speer idealizaram construções monumentais que reforçavam a superioridade da cultura ariana, adotando estilos clássicos de Grécia e Roma para expressar força e pureza racial. Essas obras não eram apenas estéticas, mas símbolos de uma narrativa de poder e pureza racial que buscava apagar a diversidade cultural moderna.
O apagamento da memória por meio da destruição física
O desaparecimento de espaços também é uma forma de reescrever a história. Um exemplo emblemático é a destruição da Penitenciária do Carandiru, em São Paulo, após o massacre de 1992, que resultou na remoção física do espaço e na construção de um parque, o Parque da Juventude. Essa mudança representa uma tentativa de apagar a memória dolorosa, transformando um local de sofrimento em espaço de lazer e cultura — uma decisão política de silenciar o passado.
Segundo estudos, até 2022, poucas famílias receberam indenizações pelo massacre, evidenciando o apagamento oficial e institucionalizado. A memória da violência foi substituída por uma narrativa de superação e normalização. Assim, o espaço, sua destruição ou sua transformação, passa a simbolizar que certos capítulos históricos devem ser esquecidos.
A presença na ausência: a arte de relembrar por imagens
Exposições como Ausências Brasil, do fotógrafo Gustavo Germano, demonstram como a ausência física pode fortalecer a memória. Fotografias de famílias desaparecidas durante a ditadura militar recriam a presença de entes queridos, ressaltando que mesmo na ausência, há uma permanência invisível que se manifesta no olhar e na lembrança de seus familiares. Essa perspectiva revela o peso do silêncio, da ausência e do que ainda permanece vivo na resistência à tentativa de silenciar o passado.
Política, nostalgia e a luta pelo controle da narrativa
Disputas arquitetônicas e urbanísticas refletem o embate ideológico entre o passado e o presente. Como afirma Galeano, o foco na nostalgia de épocas passadas tende a mascarar as realidades atuais e a impor uma visão retrógrada. Essa estratégia, particularmente utilizada por grupos de extrema direita, reforça o medo e o conservadorismo, buscando resgatar uma ideia de mundo que valoriza a tradição e rejeita o novo.


