A recente partida entre São Paulo e Palmeiras teve um desfecho polêmico que gerou intensos debates entre torcedores e especialistas. O áudio do VAR, divulgado pela CBF, revelou que mais do que um simples erro de decisão, o que se desenrolou em campo foi um reflexo de como as convicções se formam sob pressão. A falha na análise de um pênalti tido por muitos como evidente expõe não apenas a fragilidade técnica, mas a complexidade humana no contexto do futebol.
A conveniência das convicções
No lance em questão, o jogador do São Paulo, Tapia, foi atingido pelo palmeirense Allan dentro da área, levando grande parte do público a clamar por um pênalti. Contudo, o árbitro Ramon Abatti Abel, antes mesmo de consultar o VAR, declarou: “Escorregou, escorregou!”. Esta declaração já moldou a narrativa da análise e, em seguida, os três juízes do VAR pareceram validar essa interpretação, ignorando a evidência videográfica que contradizia o que viram inicialmente.
Essa situação suscita a reflexão: como um grupo de árbitros pode chegar a um consenso tão rapidamente, mesmo frente a evidências que indicam o oposto, como observado por jogadores e torcedores? Para compreender esse fenômeno, conversei com especialistas em psicologia e neurociência, que esclarecem que esse comportamento não é isolado, mas um fenômeno social comum em grupos humanos.
O efeito da pressão social
Experimentos clássicos, como o conduzido por Solomon Asch em 1951, revelam que a pressão social pode levar indivíduos a ignorar suas próprias conclusões em favor do que o grupo está afirmando. No caso do VAR, a voz do árbitro de campo possui um peso significativo, sendo a discordância vista como uma afronta à sua autoridade. Consequentemente, diretrizes psicológicas demonstram que, em situações que implicam autoridade, a tendência a evitar conflitos pode resultar em decisões coletivas falhas.
Esse fenômeno, conhecido como conformidade social, implica que as decisões de um grupo, ao invés de serem conduzidas por evidências claras, são muitas vezes dominadas por um desejo de aceitação e conformidade. Os árbitros, influenciados pela posição hierárquica do árbitro principal, preferiram seguir sua interpretação em detrimento da análise crítica que deveria ser o foco do VAR.
A falha cognitiva no VAR
Durante o lance do pênalti em debate, os árbitros de vídeo não estavam apenas avaliando imagens; eles estavam, inadvertidamente, projetando o que esperavam ver. Este fenômeno é denominado ancoragem cognitiva, onde uma interpretação inicial molda a percepção subsequente, independentemente das novas informações que possam surgir. A neurociência explica que essa ideia de uma primeira impressão pode ser difícil de apagar, fazendo com que a análise se torne enviesada e a revisão, superficial.
O sistema de var, portanto, torna-se um reflexo de como os humanos operam sob pressão — preferindo o caminho mais fácil e menos desgastante emocionalmente. Isso implica que, em vez de corrigir um erro, o VAR pode reforçar a decisão inicial, resultando em um ciclo de reforço de convicções que pode levar a equívocos notórios.
Uma história de erro e aprendizado
O áudio do VAR, que mostra a sequência que levou àquela decisão, se transforma em um estudo de caso sobre a natureza humana. Mostra que a arbitragem não é apenas uma questão de técnica e habilidade, mas também de compreensão e revisão do próprio pensamento. O efeito do que foi escutado, o eco da palavra “escorregou”, reverberou nas decisões daquele grupo, levando a um erro que, de coletivo, se tornou uma narrativa aceitada.
O episódio expõe não apenas as falhas pessoais dos árbitros, ainda que algumas possam ser corrigidas com melhor formação e treinamentos, mas também os limites de como todos, grupalmente, interpretam e tomam decisões. A dócil aceitação de uma conclusão ditada pela autoridade expõe a fragilidade de um processo que, em teoria, deveria ter validade e precisão acima de todas as outras formas de julgamento no esporte.
O que vem a seguir?
Ao entender que a falta de adequação técnica é muitas vezes só a ponta do iceberg, vemos que a arbitragem brasileira precisa de uma profunda revisão de processos. As situações que mais escandalizam o público não são apenas um erro técnico, mas um espelho de comportamentos que permeiam a sociedade. A confiança na tecnologia como solução também se revela problemática, pois, em última análise, a verdade é moldada por percepções humanas, repletas de vieses e emoções.
Pela complexidade que a arbitragem encerra e pelas lições aprendidas após essa partida conturbada, é necessário revigorar o debate sobre como humanizar e aprimorar o campo profissional arbitral, transformando a experiência do VAR em um verdadeiro projeto de crescimento coletivo e não apenas num momento de revisão técnica. Contudo, o que se observa é que essa discussão, embora vital, se estende por um campo muito mais amplo do que se imagina — e requer de todas as partes envolvidas um olhar crítico e orgulhoso.