Desde 2021, Curitiba investe na Muralha Digital, um sistema de vigilância com câmeras inteligentes, reconhecimento facial e leitura de placas, liderado pelo setor privado. Essa expansão, que promete segurança, também evidencia um movimento preocupante de cities de controle social, levantando questões sobre privacidade, desigualdade e direitos humanos.
O que é a Muralha Digital?
Intitulado “Muralha Digital” em referência às muralhas medievais, o projeto envolve cerca de 2000 câmeras distribuídas pela cidade, conectadas a uma central de monitoramento no Instituto das Cidades Inteligentes (ICI). Além de câmeras convencionais, o sistema utiliza reconhecimento facial, leitores automáticos de placas e câmeras corporais, capazes de analisar imagens e identificar comportamentos suspeitos em tempo real.
Segundo pesquisa publicada na revista Globalizations, agentes da Guarda Municipal monitoram a cidade por meio de um “videowall”, com sistemas automatizados que buscariam objetos ou ações consideradas ameaçadoras, elevando o controle urbano a um patamar de vigilância constante.
A construção da cidade vigiada
Este sistema reflete a evolução do entendimento de Curitiba como uma cidade modelo —primeiro em planejamento urbano, depois sustentável e, agora, “inteligente”. A narrativa da cidade “mais inteligente do mundo” reforça o protagonismo das tecnologias de vigilância uma vez que, em eventos como o Smart City Expo, o projeto é apresentado como um sucesso que deve ser replicado no Brasil e na América Latina.
Porém, a pesquisa indica que a implementação da Muralha Digital acontece de forma opaca —sem consultas públicas ou avaliações de impacto, com o Instituto das Cidades Inteligentes operando de forma centralizada e sem transparência sobre coleta e uso de dados.
Riscos e desafios da vigilância algorítmica
A promessa de neutralidade e eficiência das câmeras inteligentes desconsidera os riscos de discriminação, amplificação de desigualdades e ataque à privacidade. Estudos apontam que sistemas de reconhecimento facial apresentam maior erro para negros e mulheres, além de influenciar abuso de poder e injustiças, especialmente contra populações marginalizadas.
Na cidade, indivíduos em situação de rua, por exemplo, já representam 48,15% das vítimas de violência pela Guarda Municipal, levantamento do Observatório de Direitos Humanos. O uso intensificado dessas tecnologias pode agravar esses números, embora não haja dados específicos sobre os impactos em Curitiba.
Dependência de tecnologia estrangeira e expansão sem controle
Outro fator de preocupação é a forte dependência tecnológica na chinesa Hikvision, alvo de sanções internacionais, que fornece o maior volume de câmeras do sistema. Essa relação reforça críticas sobre vulnerabilidade a controle externo ou manipulação.
Recentemente, o programa “Conecta Muralha” expandiu a vigilância ao integrar cerca de 6 mil câmeras privadas e públicas, incluindo condomínios, escolas e empresas, numa tentativa de criar uma verdadeira “cidade surveillance”. Tal ampliação ocorre sem debates públicos ou salvaguardas contra abusos.
Lições e alertas para o futuro
A experiência de Curitiba evidencia que o discurso de cidades inteligentes encobre um avanço rumo ao controle social, muitas vezes sem considerar os direitos fundamentais. Especialistas alertam que o verdadeiro conceito de cidade inteligente deve priorizar direitos, justiça social e transparência, não o aumento de ações de vigilância que aprofundam desigualdades.
Para que a tecnologia seja aliada à cidadania, é necessário promover debates públicos, implementar avaliações de impacto participativas e estabelecer regulações que garantam a privacidade e a responsabilização social de sistemas de vigilância.
Assim, as cidades podem se transformar em espaços mais seguros e inclusivos, e não apenas fortalezas monitoradas pelo medo do outro ou pelo controle de elites.
Gabriel Pereira – Professor assistente de IA & Cultura Digital na Universidade de Amsterdam (UvA). Carolina Batista – Professora do Departamento de Geografia, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Henrique Kramer – Mestre em Gestão Urbana pela PUC Paraná. Júlia Abad – Mestranda do PPG em Gestão Urbana (PPGTU), da PUC Paraná. Rodrigo Firmino – Professor do PPG em Gestão Urbana, da PUC Paraná.
Este artigo é uma republicação de The Conversation sob licença Creative Commons. Leia o artigo original aqui.