O Superior Tribunal de Justiça (STJ) atingiu, recentemente, a marca simbólica de um milhão de habeas corpus recebidos desde sua instalação em 1989, provocando debates sobre o uso desse instrumento jurídico no Brasil. Segundo o próprio tribunal, o avanço exponencial na demanda reforça a necessidade de revisão nas práticas e na estrutura do sistema de justiça criminal.
O aumento no uso do habeas corpus e suas implicações
Especialistas avaliam que esse crescimento reflete tanto uma demanda por maior proteção de direitos fundamentais quanto possíveis falhas na efetividade do sistema judicial. Magistrados, membros do Ministério Público (MP), advogados e defensores públicos abordam o fenômeno sob diferentes perspectivas, mas coincidem na necessidade de uma análise crítica do papel do habeas corpus na Justiça brasileira.
Uso como substitutivo recursal
De acordo com Guilherme de Souza Nucci, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), o excesso de habeas corpus não é causado por causa única. Para ele, fatores estruturais como crescimento populacional, desigualdade social e avanço da criminalidade contribuem para a sobrecarga do Judiciário. Nucci destaca ainda que advogados, às vezes, recorrem ao habeas corpus para fugir da complexidade dos recursos tradicionais, o que prejudica a eficiência do sistema.
Nucci alerta que o uso inadequado do instrumento enfraquece seu valor constitucional, concebido para situações excepcionais, e recomenda uma postura mais firme dos tribunais estaduais e regionais no indeferimento de petições que deveriam seguir os recursos previstos em lei. “Quando a instância inferior entende de forma correta que há recurso próprio, o habeas corpus não deve ser conhecido”, afirma.
Precedentes e a responsabilidade dos tribunais
Na mesma linha, o defensor público Marcos Paulo Dutra aponta uma jurisprudência ambígua que incentiva o uso indiscriminado do habeas corpus, mesmo diante de recomendações do STJ de que esse não seja um remédio para todos os casos. Ele observa que decisões de tribunais muitas vezes ignoram entendimentos pacificados, gerando uma prática de insistência que sobrecarrega o sistema.
Dutra reforça que a banalização do habeas corpus pode descaracterizar sua função de proteção contra ilegalidades e abusos, tornando-se uma estratégia ineficaz e até prejudicial ao funcionamento do Judiciário.
Desrespeito aos precedentes e impacto na segurança jurídica
O ministro Ribeiro Dantas, da Quinta Turma do STJ, aponta que a principal causa do fenômeno é o desrespeito às jurisprudências consolidadas pelos tribunais superiores. Segundo ele, quando decisões distintas são proferidas em casos semelhantes, a previsibilidade e a segurança jurídica ficam ameaçadas, tornando o sistema uma “justiça lotérica”.
“A observância rigorosa dos precedentes é fundamental para garantir estabilidade e confiança nas decisões judiciais”, ressalta Dantas. Ele defende que uma postura mais disciplinada dos juízes reduziria o número de pedidos frustrados, fortalecendo o papel da jurisprudência e a credibilidade do sistema.

Falta de preparo técnico e sua influência na crise
O advogado criminalista Caio César Domingues de Almeida observa que a resistência de instâncias inferiores em aplicar precedentes consolidados é uma das principais causas do aumento de habeas corpus. Ele exemplifica com o caso do HC 598.886, em que uma condenação foi questionada por não seguir procedimento previsto pelo Código de Processo Penal, porém muitas jurisdições ignoraram essa orientação.
Na visão do especialista, a má compreensão do uso do habeas corpus, aliado à atuação de profissionais mal preparados, contribui para a crise atual e para a perda de credibilidade do instrumento. “Impetrar pedidos sem fundamento adequado ou de forma indevida prejudica toda a sistemática jurídica”, afirma.
O defensor Marcos Paulo Dutra reforça a preocupação, ressaltando que a falta de domínio técnico adequado por parte de advogados e a insuficiência de critérios na formação profissional agravam o quadro, impedindo um uso racional do recurso constitucional.
O papel do Ministério Público e sugestões para o sistema
Caio Almeida destaca que o MP precisa atuar com maior responsabilidade na formulação das denúncias, alinhando-as às jurisprudências consolidadas. Por exemplo, oferecer denúncia já reconhecendo o tráfico privilegiado, quando apropriado, poderia promover uma Justiça mais justa e diminuir demandas infundadas.
O ministro Rogerio Schietti Cruz afirma que o Ministério Público deve reconhecer sua parcela de responsabilidade na dinâmica do sistema de justiça criminal, adotando postura mais criteriosa na condução das ações penais. Segundo ele, maior investimento em atuação responsável reduziria a litigiosidade e o uso indevido do habeas corpus.
Ainda a força do habeas corpus na proteção de direitos
Apesar das críticas, o habeas corpus continua sendo uma ferramenta vital na defesa de liberdades individuais, especialmente em casos de ilegalidades explícitas. Sua história demonstra que, mesmo diante da crise, ele mantém sua relevância no sistema jurídico brasileiro.
A série especial “HC 1 milhão: mais ou menos justiça?” debate o fenômeno e propõe reflexões para equilibrar proteção de direitos com racionalização de recursos. No próximo domingo, mais propostas para aprimorar o uso do instrumento serão discutidas em eventos do tribunal.
Fonte: STJ