O renomado fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, que faleceu nesta sexta-feira aos 81 anos, deixou um legado de imagens impactantes que retratam a condição humana em situações extremas. Entre suas experiências mais marcantes está um episódio ocorrido em 1994, durante a cobertura do genocídio em Ruanda, quando sua vida foi salva graças à fama de Pelé.
O genocídio de Ruanda e a experiência de Salgado
Na época, o fotógrafo viajava de barco da Tanzânia para Ruanda, acompanhado por um intérprete, para documentar o conflito entre hutus e tutsis. Durante o trajeto, foi interceptado por um grupo de tutsis armados que o confundiram com um francês — nacionalidade associada ao apoio aos hutus no conflito. Salgado relatou sua experiência impressionante.
— Depois de muito andar, chegamos a um rio por onde os tutsis estavam fugindo para a Tanzânia. Havia uma quantidade de mortos descendo do rio. Tinha uma queda d’água acima e eu contei, em meia hora, 29 corpos caindo. O barquinho que trazia os fugitivos voltava vazio e eu fui perguntar ao pessoal se podia ir nele até Ruanda. De repente, tinha umas dez pessoas com facões em volta de mim. Olho para o meu intérprete e ele estava pálido, cinza.
Temendo por sua vida, Salgado afirmou ser brasileiro e pediu ao intérprete que mencionasse Pelé, o ídolo do futebol mundial. A estratégia funcionou: ao reconhecerem o nome do jogador, os tutsis permitiram que ele seguisse em segurança.
— De jeito nenhum! Eu venho do Brasil… [disse] em francês, com o cara traduzindo. Fale para eles que eu sou do país do Pelé! Aí a situação já mudou. O Pelé é realmente conhecidíssimo e de certa forma salvou a minha vida — disse Salgado em entrevistas à Globonews.
O contexto do genocídio
O episódio vivido por Sebastião Salgado ocorreu em 1994, durante o genocídio de Ruanda, um dos conflitos mais sangrentos do século XX. Em cerca de 100 dias, entre abril e julho daquele ano, aproximadamente 800 mil tutsis e hutus moderados foram assassinados por milícias extremistas hutus.
A violência foi motivada por tensões étnicas históricas agravadas pela colonização belga, que privilegiou a minoria tutsi, gerando ressentimentos profundos entre os hutus. O estopim foi o assassinato do presidente ruandês Juvenal Habyarimana, de etnia hutu, em 6 de abril de 1994. A partir daí, milícias hutus iniciaram massacres em massa.
Quem foi Sebastião Salgado?
Nascido na vila de Conceição do Capim, em Minas Gerais, em 1944, Salgado transformou o fotojornalismo. Seu registro das injustiças sociais e das populações marginalizadas atravessou fronteiras, mostrando a realidade de trabalhadores rurais, refugiados, povos originários e territórios em risco. Seu estilo inconfundível unia emoção, reflexão e forte apelo estético, lirismo e denúncia, sempre com domínio da luz natural e composição inspirada.
Formado em economia, com mestrado na Universidade de São Paulo e na Sorbonne, Salgado iniciou suas sessões fotográficas com uma Leica durante viagens a trabalho pela África. Três anos depois, ele decidiu se dedicar exclusivamente à fotografia, abandonando seu cargo de secretário da Organização Internacional do Café para se especializar como fotojornalista independente.
Com base em Paris, ele trabalhou para agências de fotografia de prestígio como Sygma e Gamma, antes de ingressar na Magnum. Em 1981, um incidente mudou sua vida; Salgado cobria os 100 primeiros dias do governo Ronald Reagan quando o presidente americano foi vítima de um atentado a tiros em Washington. As imagens que ele capturou viajaram o mundo e, com o dinheiro da venda, pôde financiar uma viagem à África, onde produziria seu primeiro projeto autoral.
Seu primeiro livro, “Outras Américas”, de 1986, marcou um retorno às suas origens, documentando a paisagem geográfica e humana de cidades do litoral brasileiro e de países como Bolívia, Chile, Peru, Equador, Guatemala e México. “Meu único desejo era voltar à minha terra bem-amada, para meu Brasil do qual um exílio um pouco forçado me obrigou a me afastar”, afirmou o fotógrafo na época. Reunindo um trabalho fotográfico entre 1977 e 1983, a obra mostra as condições de vida dos camponeses e a resistência cultural dos indígenas latino-americanos.
A trajetória de Sebastião Salgado, marcada por coragem, sensibilidade e um olhar humanista, deixa um legado que transcende a fotografia e que continuará a inspirar gerações futuras.