Com mais de 20 obras publicadas e a marca de um dos principais especialistas em ditadura militar do país, o historiador Carlos Fico prepara-se para se aposentar em breve. Em um momento significativo para a política brasileira, ele lançará, na próxima semana, seu último livro: “Utopia autoritária brasileira: como os militares ameaçam a democracia brasileira desde o nascimento da República até hoje”.
Um chamado à reflexão sobre a história brasileira
Em entrevista à Agência Brasil, Fico, que leciona na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), expressa o desejo de publicar uma obra que alcance o grande público e se reverberasse na sociedade contemporânea. O tema do livro se relaciona diretamente com os desafios atuais enfrentados pela democracia brasileira.
Fico argumenta que todas as crises institucionais no Brasil, desde a Proclamação da República em 1899, têm sua origem ligadas às ações dos militares. Ele destaca duas ideias fundamentais que marcaram a atuação deles: a convicção de que os civis não estão capacitados para governar e a interpretação de um direito constitucional para intervir na política.
O historiador ressalta que essa lógica intervencionista se perpetuou ao longo de mais de um século, criando um padrão de impunidade. Fico revela que, até o presente momento, nenhum dos envolvidos em golpes ou tentativas de golpes de Estado foi preso, refletindo uma tradição de desresponsabilização.
O lançamento do livro coincide com um momento histórico: na última quarta-feira (20), a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, de forma unânime, tornar réus mais dez acusados de tentativas golpistas, entre os quais nove são militares. Para Fico, qualquer condenação seria um marco sem precedentes na história do Brasil.
A proposta do autor em seu novo livro
Carlos Fico explica que o livro foi escrito para o público geral, livre de jargon acadêmico, e tem como tese central a ideia de que os militares sempre tiveram um papel preponderante nas crises institucionais do Brasil. Ele argumenta que essas crises resultam em rupturas da legalidade constitucional.
“O livro detalha episódios históricos que podem ser caracterizados como golpes de Estado e tentativas de intervenção militar, analisando a participação e a influência militar em cada um deles. Desde a deposição de Dom Pedro II até os eventos mais recentes, cada capítulo encontra a presença decisiva dos militares,” diz Fico.
A visão autoritária e suas consequências
Quando questionado sobre a expressão “utopia autoritária” utilizada no título, Fico explica que ela refere-se à percepção histórica dos militares sobre a sua supremacia em relação aos civis. Desde o fim da Guerra do Paraguai, essa visão se consolidou, alimentando a ideia de que os civis não estão preparados para governar.
Ele afirma que essa mentalidade elitista se perpetua ao longo da história, manifestando-se em momentos críticos, como em 2022 e 2023, quando a fragilidade das instituições democráticas se fez evidente. Para Carlos Fico, essa tradição intervencionista é uma ameaça constante à democracia brasileira.
A influência da sociedade e a necessidade de mudança
Embora a atuação dos militares seja central na narrativa do autor, ele também reconhece o papel essencial de outros setores da sociedade que apoiaram a intervenção militar. “A utopia autoritária é uma visão compartilhada por algumas elites que acreditam que a sociedade, especialmente os mais pobres, é incapaz de compreender a política,” observa Fico.
O historiador acredita que os episódios recentes de ativismo militar mostram como essa mentalidade ainda está presente. A frequência com que alguns setores evocam a Constituição na defesa de intervenções militares demonstra a profunda influência que essa lógica exercita na política brasileira.
Carlos Fico vai além ao considerar que a impunidade histórica dos militares é uma das razões pelas quais essa lógica intervencionista permanece ativa. Conforme observa, a falta de responsabilização dos militares por crimes passados tem consequências diretas na política atual.
“O que está acontecendo agora é inédito. A Justiça começa a agir, e o STF transforma denunciados em réus. Esperamos que isso seja um sinal de mudança, embora a anistia sempre esteja no horizonte histórico do Brasil,” conclui Fico, deixando uma mensagem clara sobre a necessidade de transformação das normas que favorecem essa impunidade.
O livro de Carlos Fico promete provocar reflexões profundas e necessárias sobre a história do Brasil, o papel dos militares e a floresta intervencionista que ainda se impõe sobre a democracia nacional. Com suas análises e propostas, o autor convida todos a repensar o passado e a defender um futuro mais democrático e justo.