As cartas inéditas de Fernando Henrique Cardoso, agora sob a guarda da Fundação que leva seu nome, trazem à luz um período conturbado da história brasileira. Este documento não apenas revela as angústias de um intelectual exilado, mas também permite uma reflexão profunda sobre o exílio e a luta pela liberdade durante o regime militar que dominou o Brasil a partir de 1964.
A situação política de 1964 e o exílio forçado
Em maio de 1964, quando o jovem sociólogo Fernando Henrique Cardoso se viu forçado a deixar o Brasil, sua situação não era apenas uma questão pessoal, mas um reflexo da repressão política que se instaurava no país. O exílio começou com a impassibilidade do reitor da Universidade de São Paulo em conceder licença ao professor, sob a alegação de “abandono de cargo”. Na sua carta à Faculdade, FH expôs os perigos que enfrentava, abordando a crescente opressão que levou muitos pensadores críticos a abandonarem a nação.
As cartas como testemunho de uma época
A correspondência de FH, que será divulgada em 2026, conta com mais de 400 cartas trocadas entre ele e colegas, amigos e familiares, e fornece uma visão abrangente de sua vida em Santiago, Chile, onde permaneceu até 1967. Nas cartas, ele discorre sobre suas pesquisas sobre desenvolvimento econômico, fazendo uma clara crítica à realidade brasileira, além de relatar aspectos de sua rotina familiar e as preocupações com seus filhos.
Relato da vida cotidiana no exílio
O cotidiano de Fernando e sua esposa Ruth Cardoso em Santiago não era apenas uma adaptação ao novo ambiente, mas um ato de resistência intelectual. Apesar das dificuldades, FH se envolveu com o Instituto Latino-Americano de Planejamento Econômico e Social, e encontrou um espaço para continuar seu trabalho acadêmico. Ele menciona em suas cartas o apoio emocional que recebia de amigos e colegas, refletindo mudanças na sua visão sobre o exílio, que, apesar de ser considerado ‘prazeroso’ por alguns aspectos, também trouxe um ‘sentimento estranho’ de desconforto, devido à situação de outros exilados em condições precárias.
O papel das cartas na formação de uma nova sociologia
O conteúdo das cartas também discute a formação de uma nova sociologia brasileira, desprovida dos preconceitos que permeavam a academia sob a ditadura. Intelectuais como Celso Furtado e Florestan Fernandes trocavam ideias com FH sobre a importância de construir uma ciência social que fosse autêntica, capaz de dialogar com as necessidades do Brasil em desenvolvimento. “Pensei que nesse país estranho eu estaria mais defendido sentimentalmente do que no Chile”, escreveu FH, refletindo sobre os desafios emocionais e profissionais enfrentados durante seus anos de exílio.
A busca por um projeto político e acadêmico
Por trás das constantes trocas de cartas, existia uma busca por um projeto de desenvolvimento que fosse efetivo para o Brasil. FH se preocupava em transmitir o conhecimento científico que estava sendo produzido, mostrando um comprometimento não apenas com suas ambições pessoais, mas com os destinos do país. Essa preocupação se alinha ao que vários intelectuais da época defendiam: a necessidade de um Brasil mais igualitário e democrático.
Retorno ao Brasil e a continuidade da luta
O regresso ao Brasil em 1968 marcou um novo capítulo na vida de FHC, que, após a aposentadoria compulsória imposta pelo AI-5, fundou o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e contribuiu para o desenvolvimento de uma nova forma de análise política. A vida acadêmica de FH não deixou de lado suas raízes sociológicas, mas passou a se concentrar na construção de uma democracia brasileira, transformando seu legado acadêmico em ação política concreta.
As cartas de Fernando Henrique Cardoso não são apenas um reflexo de sua experiência pessoal, mas, mais importante, são um testemunho histórico que ilumina a luta pela liberdade e a resistência intelectual no Brasil durante um período sombrio da sua história. Através desse material, podemos compreender melhor não apenas a figura de FH, mas também a rica tapeçaria de interações entre intelectuais que moldaram a sociologia e a política brasileira do século XX.